João Fellet
Da BBC Brasil, em Brasília.
Moradora da ocupação (ao fundo, as torres do Congresso).
Levada ao pé da letra, a afirmação da
presidente Dilma Rousseff de que o Brasil "venceu a pobreza extrema
visível" não resiste a um rápido giro pelas vias que cercam o Palácio da
Alvorada, residência da governante, e a Esplanada dos Ministérios.
À beira das avenidas, em acampamentos
visíveis a qualquer motorista ou passageiro, centenas de pessoas vivem em
barracos sem acesso a redes de água, esgoto, eletricidade e, em muitos casos,
tampouco a programas de transferência de renda.
O discurso de Dilma, em 25 de fevereiro,
ocorreu dias após o anúncio da ampliação do programa Brasil sem Miséria. Em seu
programa de rádio, ela afirmou que a medida zeraria o cadastro de brasileiros
considerados extremamente pobres pelo governo, com renda familiar per capita
inferior a R$ 70.
"Vencemos a pobreza extrema
visível e agora vamos atrás da pobreza extrema invisível, aquela que teima em
fugir aos nossos olhos e aos nossos programas sociais", disse a
presidente. Dilma estimou que 700 mil famílias ("nas periferias das grandes
cidades, em comunidades ribeirinhas e extrativistas na Amazônia, no semiárido
do Nordeste e em outras áreas rurais") ainda estejam à margem das
políticas públicas.
No entanto, o caso das famílias
acampadas não na periferia, mas coração da capital federal, ilustra a
complexidade da missão do governo, além de expor lados da pobreza que não foram
erradicados com a expansão dos planos de transferência de renda.
De acordo com a Central de
Cooperativas de Materiais Recicláveis do Distrito Federal, há entre 400 e 500
pessoas que vivem acampadas no Planto Piloto, zona central de Brasília, onde
trabalham informalmente na coleta e separação do lixo para reciclagem. Em todo
o Distrito Federal, o grupo soma até 3.500 pessoas, das quais grande parte não
recebe qualquer benefício do governo, segundo a central.
A BBC Brasil visitou um acampamento
vizinho ao Clube de Golfe de Brasília, no Setor de Clubes Esportivos Sul. Ali,
a poucos quilômetros do Palácio da Alvorada, famílias se instalaram em meio à
densa vegetação do cerrado, em área com vista para as torres do Congresso.
Numa clareira que dá acesso a seis
barracos de lona e madeira, habitados por 17 pessoas, crianças brincam e
adultos conversam em círculo. "Nunca recebi nada do governo", diz
Marcilene Modesto dos Santos, de 30 anos.
Mãe de três filhos em idade escolar –
uma quarta filha morreu de dengue, aos 9 anos –, ela passa a maior parte do dia
a poucos metros dos barracos, separando o lixo que chega em carroças puxadas
por cavalos, meio de transporte comum entre os trabalhadores do setor.
Como ela e o companheiro, juntos, têm
renda inferior a R$ 400, integram o público-alvo do Bolsa Família. Mas Santos
diz que jamais conseguiu se cadastrar no programa.
Outros moradores também citaram
dificuldades para agendar entrevistas nos centros do Distrito Federal
responsáveis por registrar famílias para os programas federais.
Mãe de três filhos em idade escolar,
Girlene Pereira da Silva, 32 anos, diz que recebeu pagamentos do Programa Fome
Zero, lançado em 2003 e posteriormente absorvido pelo Bolsa Família. No
entanto, após trabalhar com carteira assinada por um curto período, diz que
perdeu o benefício e jamais conseguiu atualizar seu registro.
O cadastramento para os programas
federais é atribuição dos governos locais. Em Brasília, entrevistas devem ser
agendadas pelo telefone 156. Desde o início da semana, a BBC Brasil tenta
marcar um horário nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) da
cidade, mas o sistema está fora do ar.
Procurada, a Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social e Transferência de Renda não explicou as falhas no
serviço telefônico, mas disse em nota que suas equipes estão sendo ampliadas
para aprimorar o atendimento às famílias pobres.
Afirmou ainda que, a partir deste
mês, fará uma "intervenção sistemática" em áreas ocupadas por
trabalhadores do setor de reciclagem para identificar famílias que possam ser
incluídas no Cadastro Único.
Expectativas
Sem filhos, Emílio Luis da Silva, de
62 anos, não se enquadrava no Bolsa Família até a última alteração no plano,
que estendeu o benefício a todas as famílias com renda per capita inferior a R$
70.
Nascido em Petrolina (PE), ele migrou
para Brasília há oito anos em busca de trabalho. Ao não encontrar ocupação
formal, comprou uma bicicleta e passou a percorrer o Plano Piloto atrás de fios
de cobre ou máquinas avariadas nas lixeiras.
Sua renda varia conforme a sorte: se
encontra algum equipamento valioso e consegue consertá-lo, pode ganhar algumas
centenas de reais, o equivalente a um ou dois meses normais de trabalho.
Nos tempos de azar, conta com a
comida e o dinheiro doados por moradores de Brasília para se manter com a
esposa, Maria Lúcia Maciel, de 47 anos. Os dois se instalaram perto do Clube de
Golfe há três anos. Desde então, Silva afirma ter tentado comprar uma
residência em Brasília pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do governo
federal.
Os planos ruíram, segundo ele, quando
descobriu que precisava ganhar ao menos três salários mínimos mensais para
pleitear um financiamento. Silva então cogitou alugar uma casa em alguma
cidade-satélite, mas, como trabalha de bicicleta e o lixo que recolhe se
concentra no Plano Piloto, abandonou a ideia. "Não daria conta de morar lá
e vir para cá todos os dias no pedal."
Para que passe a receber o Bolsa
Família, ele aguarda que o Congresso aprove a Medida Provisória que instituiu
as mudanças no plano, o que deve ocorrer nos próximos meses.
Auxílio-doença
Já outras duas famílias da ocupação
recebem repasses pelo programa. "É um dinheirinho que faz a
diferença", diz Solange da Silva, 35 anos, mãe de dois filhos.
Desde que, há dois anos, passou a
receber R$ 100 mensais pelo plano, ela busca algum auxílio governamental para
seu irmão, que tem crises frequentes de epilepsia e foi impedido de trabalhar
pelo médico. "Na última vez que saiu, teve uma crise e caiu de um
caminhão. Hoje cada um ajuda no que pode para ele ficar em casa."
Mesmo entre alguns beneficiários do
Bolsa Família, há queixas sobre o programa. Em visita a amigos que vivem na
ocupação, Francisco Neto, 61 anos, diz receber mensalmente R$ 166 do plano para
criar seus três filhos, que têm entre 10 e 15 anos. Viúvo – a esposa foi
assassinada após uma briga – e morador de Planaltina, cidade goiana no entorno
do Distrito Federal, ele afirma que o repasse "não dá nem para o café da
manhã".
Neto faz bicos, consertando
bicicletas de vizinhos. No ano passado, porém, teve diagnosticado um
engrossamento da próstata (hiperplasia prostática benigna), doença que provoca
fortes dores nas pernas e bloqueia a urina.
Na véspera do fim de ano, diz ele, o
hospital onde se trata suspendeu a entrega de seu remédio, cujas cartelas
custam R$ 200 ao mês. Interrompido o tratamento por dois meses, as dores se
agravaram e ele não foi capaz de trabalhar. Mas só por alguns dias.
"A pobreza funciona assim: se
você se abate por causa de uma dor, não sai mais de casa e vai piorando. Mesmo
nas minhas condições, eu tenho que fazer minha correria."
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