Por Ruy Samuel
fonte: oab.org.br
O artigo “Conselhos de um advogado a um jovem juiz” é de autoria de
Ruy Samuel Espíndola, mestre em Direito Público pela UFSC, professor de Direito
Constitucional da Escola Superior de Magistratura de Santa Catarina e professor
de Direito Eleitoral da ESA da OAB catarinense.
Conselhos de um advogado a um jovem juiz
I – Estude com mente aberta: estude sempre e muito. O seu
esforço do concurso e o da faculdade são apenas iniciais. Tanto doutrina quanto
a jurisprudência demandarão sua atenção. Especialmente a primeira, que lhe deve,
com o tempo, dar maturidade intelectual e liberdade de pensamento no Direito,
livrando-te do engessamento da segunda. Não leia apenas sobre Direito. Isso te
empobrecerá o conhecimento e o espírito. Veja bons filmes, históricos e
políticos, sobretudo. Amplie sua visão da humanidade. Leia com certa imersão
algo de história, filosofia, sociologia, psicologia, etc. Desenvolva a
capacidade de se apaixonar pela aquisição de saberes. E estude com cuidado os
autos, e as razões dos advogados especialmente, pois sem eles estarás sozinho na
caminhada de fazer justiça. Não leia somente a contestação; dê atenta atenção às
alegações finais e a tudo quanto produzido. Ou seja, leia com atenção o que os
advogados produziram e demonstre isso com cuidado em seus escritos. Não se iluda
ao achar por que são pagos por fontes privadas serão menos confiáveis do que o
Promotor de Justiça. O que distingue um homem é o seu caráter, não o posto que
ocupa ou a fonte pública ou privada de suas rendas. Reflita sobre o mito
equívoco, reproduzido como um mantra, sem a menor reflexão: “o juiz não está
obrigado a decidir sobre todos os pontos levantados pelas partes”.
II – Sirva com espírito republico: você ocupa um dos postos
mais importantes da República, o de juiz. Querendo ou não, decide destinos,
vidas, as tristezas e alegrias de muita gente. Mas é servidor público. És pago
para servir, com independência e austeridade. Mas isso não é incompatível com a
humildade, com o respeito ao outro, com a noção de que o teu dever de
urbanidade, quando cumprido, alimenta o desejo de civilidade de todos os demais.
Um juiz arrogante ou prepotente atinge negativamente a imagem que o público tem
da magistratura e atrapalha o processo de distribuição da justiça. Inibe a
atuação dos inexperientes advogados e estressa os mais velhos, fazendo com que
tudo seja mais difícil e custoso no foro. Trate bem a todos, principalmente os
humildes cidadãos e os inexperientes advogados, e aqueles com quem tratas
dia-a-dia no foro: o servidor da justiça.
III – Se dispa de preconceitos: todos temos preconceitos. O
mais importante não é não tê-los, mas como lidamos com eles e como essa lida
afeta nossos afazeres. Imparcial e nobre é o juiz que tendo experiências
anteriores negativas ou pré-concepções sobre determinado assunto ou pessoas, ao
julgá-los se atém a lei e as provas dos autos, tratando todos com igualdade e
respeito. Imparcial e nobre aquele que procura policiar sempre seus sentimentos
e tendências que podem comprometer a imparcialidade de seus julgamentos, não
esquecendo que neutralidade é uma coisa, imparcialidade, outra.
IV – Valorizar a legalidade e a separação de poderes:
vivemos tempos para se comemorar conquistas democráticas e se refletir como
estamos tratando essas mesmas conquistas. Há uma tendência crescente, no meio
jurídico, alimentada nas faculdades de direito, e em alguns setores da
magistratura, “de se atribuir” à democracia representativa déficits
democráticos. Em face disso se empregam hermenêuticas e posturas interpretativas
que depreciam autoridades ligadas aos outros poderes, fazendo o judiciário órgão
“disciplinar” dos demais. E às vezes mesmo legislador “ultra vires”. E se
cultiva a ideia, frágil e periclitante, de que o Judiciário é o lugar para o
melhor atendimento dos anseios populares, e não mais os parlamentos ou
administração pública, atribuindo a si mesmo o protagonismo na distribuição e
realização de políticas públicas. O ponto merece grande reflexão. Cada um dos
poderes tem o seu papel. Releituras das leis pelo judiciário não se podem dar
por que não atendem o “anseio de justiça do juiz”. Se o juiz desaplicar a lei só
o poderá fazer com base em inconstitucionalidade patente da norma, mas não por
que desaprova o querer do legislador. Cuidado, neste norte, com o manejo
irracional e ametódico da teoria dos princípios, em uso excessivo da chamada
proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e outras normas para se chegar a
quaisquer decisões que desatendam regras legais ou mesmo constitucionais ao
argumento de se fazer cumprir princípios. Esses não podem instituir insegurança
jurídica e o magistrado não pode ser o cavaleiro desta.
V – Seja “juiz juiz”, não “juiz delegado” ou “juiz
promotor”: há magistrado que pelo preconceito contra os demais atores
processuais, por receio da opinião pública, por não querer se indispor com o
“colega promotor”, ou por puro comodismo de não querer pensar com suas próprias
forças, acaba sempre deferindo, homologando ou apenas por citação “per
relationem” concordando com o que diz a acusação (criminal, cível ou eleitoral),
não dando a mínima para o que produziu o lado oposto ao MP. Em audiência,
deferem todos os pedidos do “parquet”, rechaçando, prontamente, manifestações da
defesa. Ao indagar as partes e as testemunhas, agem como delegados raivosos, ou
promotores obstinados, demonstrando uma inclinação acusatória completamente
inadequada para o posto que ocupa e para o concurso a que prestou. Reflita sobre
isso e fuja dessas tendências que maculam a independência da magistratura e as
exigências de imparcialidade e austeridade que a sociedade esclarecida em geral
espera dos juízes. Haja sempre com igualdade de tratamento a todos os atores
processuais. Seja sim um homem inclinado a defender a Constituição e seu Sistema
de Garantias, assim como a independência da magistratura diante de todos os
poderes e das próprias inclinações acusatórias de nossos espíritos. Ouça a todos
com igual atenção e cuidado, não esquecendo que o processo é um cadinho de
paixões, que a muitos cega, e desta cegueira, ninguém está livre de a
experimentar - mesmo o magistrado. Não se deixe levar “pelo politicamente
correto”, “pelo moralmente apreciável”, quando esses se contrapuserem ao
“juridicamente adequado” e ao “constitucionalmente sustentável”. Fuja dos
moralismos jurídicos em geral – eles ressuscitam Robespierre e a era do
terror.
VI – Não receie a opinião pública, decida com a sua
consciência: triste são os homens que para decidir esquecem de
princípios ou regras, e apenas seguem o curso da cambiante e irrefletida opinião
pública, às vezes guiada por uma mídia sensacionalista e irresponsável. Se isso
é triste para qualquer homem, o que haveremos de dizer para o magistrado que
assim porta-se em seu ofício público. Os predicados de inamovibilidade,
vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos são justamente o que distingue a
movibilidade, transitoriedade dos mandatos populares, que precisam da
homologação constante da opinião pública para que parlamentares e chefes de
executivo sigam seus cursos de vida institucional. Decida tendo em conta padrões
de legalidade e de devido processo legal, e não por razões de conveniência e
oportunidade, próprios e adequados à cena política em geral. Nunca esqueça que
fazer cumprir a lei não é algo simpático e nunca agradará a todos. Sua função
não é a de agradar, cativar e captar índices elevados de ibope. Sua função é de
decidir segundo critérios pré-estabelecidos pelo direito, segundo dados
objetivos que podem ser extraídos do universo das provas e do processo –
universo nem sempre certo, que, todavia, não pode ter sua incerteza ampliada
pela falta de independência do juiz.
VII – Trate bem aos advogados, como gostaria de ser tratado
se advogado fosses: nunca esqueça que o advogado é seu companheiro de lutas no
campo de batalha pela justiça, assim como o promotor o é, e os demais operadores
do direito com função processual (servidores, membros da polícia judiciária,
peritos, etc.). Ele tem o dever de parcialidade e tu o de imparcialidade. Esses
deveres não são contrapostos. O primeiro ajuda a sustentar a tua imparcialidade,
já que assim como o MP, as partes defendem uma “parcela” do mosaico da verdade,
que deverás procurar com seriedade e desvelo no cadinho do processo. Quanto mais
jovem e inexperiente o advogado, especialmente à medida que fores ficando
maduro, trate-o com consideração. Ele se inicia na caminhada do direito contigo.
Elogie, com sinceridade, um trabalho por ele feito, verbalmente ou por escrito.
Se quiser criticá-lo, o faça com discrição. Se por escrito, com elegância. Se
ele te faltar à urbanidade, seja com ele enérgico, mas não grosseiro ou
autoritário. Não pessoalize o discurso no processo; não faça da audiência um
ringue de disputas; e se assim ela se tornar, seja o juiz da luta, não o outro
combatente... Prestigie sempre a todos nos atos processuais. Olhe nos olhos dos
advogados. Dê-lhes atenção. Ao fixar honorários, não pense no que ganhas ou no
que ganharás até o final de sua carreira. Pense que são profissões distintas,
com dificuldades distintas, e que a escolha do serviço público tem seus ônus e
bônus, e não queira ficar distribuindo ônus sem fundamento e nem negar
injustamente devidos bônus aquém os mereça por lei e por direito.
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